As Mulheres Do Meu Pai

by Jose Agualusa and Karen Boswall

(notas de uma viagem através da África Austral)

Sinopse

Laurentina Reis, 30 anos, documentarista portuguesa nascida na Ilha de Moçambique, regressa a África para conhecer o pai, Faustino Manso, músico angolano que se tornou famoso nos anos sessenta e setenta. Faustino viveu em diversas cidades angolanas, ao longo da costa, bem como em Cape Town, Maputo, Quelimane e Ilha de Moçambique. Laurentina tenta reconstruir o acidentado percurso do pai, entrevistando as suas muitas viúvas e filhos, bem com outras pessoas que conviveram com ele. Acompanham-na nesta viagem o namorado, Mariano Gourgel, operador de câmara e também ele um português de origem africana, e Kiluange Dias, jovem escritor e cineasta angolano. O motorista do grupo, Pouca Sorte, tentou a carreira de cantor na época colonial. Formou uma banda de rock, Os Inesquecíveis, mas o projecto não deu certo. Após a independência foi camionista, pescador, barbeiro. No ano passado comprou uma van e tornou-se taxista.

O que se seguem são fragmentos do diário de viagem de Laurentina Reis.

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Luanda, 22 de Outubro de 2005

Faustino Manso, o meu pai, morreu ontem de manhã. Comprei no aeroporto, ao desembarcar, o Jornal de Angola. A notícia, breve, seca, vem na página de cultura:

“Morreu o Seripipi Viajante – Faustino Manso, 81 anos, faleceu na madrugada de ontem, na Clínica Sagrada Esperança, Ilha de Luanda, após prolongada doença. Manso, a quem os seus admiradores chamavam o Seripipi Viajante, foi um músico muito popular durante os anos sessenta e setenta, não apenas em Angola, mas em toda a África Austral. Viveu em diversas cidades angolanas, e também em Cape Town, África do Sul, e em Maputo, então Lourenço Marques. Regressou a Luanda, de onde era natural, em 1975, logo após a independência. Foi durante muitos anos funcionário do Instituto Nacional do Livro e do Disco. Deixou viúva, a senhora Anastácia Vieira Dias Manso, além de três filhos e doze netos”.

As páginas da necrologia são mais eloquentes. Quatro anúncios trazem o nome de Faustino Manso. O primeiro é assinado por Anastácia Vieira Dias Manso. É o maior. A fotografia é também um pouco maior e, suponho, mais recente. Reza assim:

“Partiste sem um último adeus, marido, apagou-se o sol na minha vida. Calou-se a voz magnífica, quem agora cantará para mim enquanto eu bordo? Enganaste-me, prometeste-me que ficarias comigo até que chegasse o fim, e que me darias a mão para que eu não sentisse medo. Medo é o que sinto agora. No fim voltaste a deixar-me, e é tão longa a viagem. Não sei se te conseguirei perdoar”.

O segundo é assinado pelos três filhos, N’ Gola, Francisca (Cuca) e João (Johnny). A fotografia mostra Faustino Manso abraçado a uma guitarra.

“Querido pai, conhecemo-nos tarde, mas não, felizmente, demasiado tarde. Partiste, mas deixaste-nos as tuas canções. Hoje cantamos contigo: Nenhum caminho tem fim / longe do teu abraço“.

O terceiro e o quarto anúncios apanharam-me de surpresa. Sentei-me, aturdida, sobre a minha mala. Pedi a Mandume que me fosse comprar uma garrafa de água. Acho que só então me dei conta do calor. Ascendia do chão, húmido e denso, colava-se à pele, enrolava-se no cabelo, e era ácido como o hálito dos velhos. Uma tal Júlia de Matos, em Benguela, assina o único anúncio sem fotografia. O texto é curto, mas explícito:

“Pecado é não amar. Pecado maior é não amar até ao fim do amor. Não me arrependo de nada, Tino, meu seripipi. Repousa em paz”.

No último anúncio, o meu pai posa para a posteridade, no vigor dos seus trinta anos, sentado à mesa de um bar. Diante dele tem uma garrafa de cerveja. Distingue-se o rótulo: Cuca. Enquanto escrevo estas notas também eu bebo uma Cuca. É boa, fresca. Releio o texto:

“Pai querido, abraça a mãe quando a encontrares. Leopoldina esperou tanto tempo por esse abraço. Diz-lhe que os filhos dela, os vossos filhos, sofrem de saudades, mas que pensam em vós todos os dias, e que o vosso exemplo de coragem e de honestidade nos orienta, e orientará sempre. A nossa terra ficou mais triste sem a alegria do teu piano. Quem o tocará agora? Os teus filhos: Babaera (General), Victória (médica) e Smirnoff (empresário)”.

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Estrada de Luanda para Benguela, 30 de Outubro 9:00

Estamos finalmente on the road. Pouca Sorte apareceu diante do hotel com uma van, como essas que cumprem o serviço de táxis colectivos em toda a África Austral. Tínhamos combinado que seria um bom jipe, 4 por 4. Kiluange ficou furioso. Acha que não seremos capazes de atravessar o troço da Kanjala, no caminho para Benguela, muito destruído, e que foi cenário de sangrentas emboscadas durante a guerra. Eu, porém, decidi arriscar. Estava louca por me fazer à estrada. Mariano vem contrariado. Ele está aqui só por minha causa. Os pais dele são angolanos mas Mariano odeia África. Logo no aeroporto, nas escadas do avião, queixou-se do calor:Enfureci-me:
– Ainda nem pisámos em terra e tu já protestas. Não sabes apreciar as coisas boas?
– Que coisas boas?
– Sei lá, o cheiro, por exemplo. O cheiro de África!
– O cheiro de África?! Cheira a mijo, caramba!…
Fiquei calada. Cheirava mesmo.

16:33 – Parámos junto a um rio para descansar. A paisagem é impressionante: de um lado altos paredões de pedra, do outro um friso de elegantes palmeiras, acompanhando o leito do rio. Um grupo de mulheres e de crianças dança kuduro, à beira da estrada, ao som de um rádio de pilhas. Reconheço a poderosa voz de Dog Murras – “Levanto às cinco / estou de volta às vinte / todo o dia na praça / a vender a fuba / as costas doem muito / filhos lá em casa morrem de fome / mas ai, a alegria é bué / já chegou a paz em Angola”. Logo no início da viagem explodiu uma discussão sobre a música que iríamos escutar. Eu queria ouvir temas do meu pai, e de outros músicos do tempo dele, como o Duo Ouro Negro, um grupo que começou a fazer world music, muito antes da expressão ter sido criada. Raul Indipwo e Milo Mc Mahon, o Duo Ouro Negro, foram os primeiros africanos a actuarem nos grandes palcos do mundo. Infelizmente o carro de Pouca Sorte não possui um cd player. Só um aparelho de cassetes. Estamos condenados a ouvir a música de que ele gosta: kuduro e alguns dos sucessos actuais em Luanda – Paulo Flores e Banda Maravilha.

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Benguela, 31 de Outubro 9:00

Caía a noite, ontem, quando Pouca Sorte apontou com o queixo para uns morros, ao longe, e anunciou:
– A Canjala…
Como se dissesse:
– A Senhora Dona Morte…
O trecho da Canjala continua por reconstruir. Ali se preservam, intactos, muitos milhares de ferozes buracos, talvez a maior colecção do mundo. Naquela tarde estavam esfaimados. Lançaram-se contra nós com a voracidade de piranhas. Pouca Sorte lutou bravamente, durante quatro horas, as quatro horas mais longas da minha vida, tentando, com guinadas súbitas, mas sem nunca reduzir a velocidade, evitar a ávida goela dos monstros. Por fim, exausto, já a noite descera, como um soco, sobre nós, mudou de táctica e optou por os atropelar. Os malditos reagiram aos guinchos, aos pulos, ameaçando virar o candongueiro. Então, de repente, afastaram-se, ficaram para trás, deixando que se abrisse diante de nós, como um milagre, um liso trecho de asfalto. Pouca Sorte suspirou, pisou o acelerador a fundo, pousou o queixo no volante e adormeceu. A carrinha galgou a berma e lançou-se, novamente aos saltos, sobre o chão tumultuoso da savana. As malas pulavam à nossa volta como se tivessem vida. Por fim parámos. Houve um instante de assombro – estávamos vivos. Mariano foi o primeiro a falar:
– Grande buraco!
– Não foi um buraco, muadié – acordou-o Kiluange. – Saímos da estrada!
Saltei da carrinha para avaliar os estragos. Os dois pneus do lado direito tinham perdido todo o ar. Pouca Sorte, abanou a cabeça:
– Pouca sorte. Só trouxemos um pneu.
Senti o sangue a ferver. Em primeiro lugar combináramos que ele traria um jipe e aparecera-nos, à última hora, com aquela espécie de barraca sobre rodas. Em segundo lugar confessava ter adormecido ao volante. Finalmente, trouxera um único pneu sobressalente. Explodi:
– E agora, companheiro, passamos a noite aqui?!
Pouca Sorte lançou-me um olhar atravessado. Murmurou:
– Não há maka!
Disse qualquer coisa em umbundo ao ajudante e este puxou de uma navalha e começou a cortar capim. Abriu depois um golpe redondo no pneu e pôs-se a enfiar o capim lá para dentro. Eu nunca tinha visto nada parecido. Mariano, excitado, batia fotos.
– Genial!
– O pneu aguenta?
– Aguenta pois.
Pouca Sorte nasceu em Benguela. Tem dezoito filhos.
– De quantas mulheres?
A pergunta apanhou-o desprevenido.
– Ah, não sei, muitas. Só fazendo as contas…
– E os filhos? Você sabe o nome de todos eles?
– O importante é que eles saibam o nome do pai…

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Namibe, 2 de Novembro 12:15

Estamos no Bar da Leopoldina, no Namibe. Leopoldina, a terceira mulher de Faustino Manso, morreu há cinco anos de malária cerebral. O bar passou para a filha, Victória, uma senhora mestiça, carrancuda, que nos recebeu com duas pedras na mão. Não quer falar sobre o pai. “Não o conheci”, disse-me. Quando cheguei havia um homem alto, bonito, vestido à maneira dos pastores mucubais, sentado a uma mesa a beber cerveja e a jogar xadrez. Diante dele estava um outro sujeito, mais velho, um pouco gordo, com aspecto eslavo. Falavam russo um com o outro. Então, de repente, entrou uma mulher mucubal, muito jovem, segurando uma vara longa. Gritou alguma coisa para o pastor. Derrubou o jogo de xadrez com a vara e foi-se embora. O homem levantou-se sorrindo e saiu com ela.

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Estrada do Namibe para o Lubango, 3 de Novembro 11:45

Estive a tocar saxofone num impressionante desfiladeiro, a escassos quilómetros do local onde estamos alojados, o Flamingo Lodge, uma dúzia de barracões erguidos em pleno deserto, junto ao mar. São propriedade de um sul-africano que começou por ter uma fábrica de farinha de peixe em Porto Alexandre. Estamos agora a subir a Serra da Leba, a caminho do Lubango. A paisagem é impressionante. A estrada serpenteia entre morros altíssimos. Os homens, aqui no carro, não estão interessados na paisagem. Conversam sobre mulheres. Nos últimos dias não têm feito outra coisa senão conversar sobre mulheres.

Pouca Sorte – Eu não acredito na fidelidade. Não acredito que um homem possa gostar de uma única mulher a vida inteira.

Kiluange – Eu acho que um homem que gosta de uma única mulher é porque não gosta de nenhuma. Não há homens fieis, o que há é homens que não conseguem ser infiéis.

Mariano – Ouvi dizer que entre os mamíferos só as baleias são monógamas.

Kiluange – Não creio! O que se passa é que são bichos muito discretos.

Pouca Sorte – Ouvi falar de uma baleia que teve um caso com a Charlise Theron. Era tão discreta que não contou nem ao melhor amigo. Aquilo, porém, fazia-lhe mal, tanto silêncio. Então um dia pediu à Charlize para se vestir de homem, fato e gravata, e colocar um bigode postiço. A Charlize achou que era alguma fantasia bizarra e aceitou. As mulheres gostam de fantasias bizarras. Quando a viu vestida de homem a baleia deu-lhe uma grande palmada nas costas, riu-se muito, e disse: “Mano, ainda bem que te vejo. Sabes quem eu ando a comer? Não vais acreditar: a Charlize Theron!”.

Kiluange – Ya! Comer a Charlize Theron e não dizer a ninguém é como ganhar o Totoloto e não levantar o bilhete…

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Estrada do Ruacaná para Swakopmund, 7 de Novembro 16:37

Estamos em Wlotzkas Baken. São dezenas de pequenas casas pintadas de cores vivas e colocadas no meio de nada. Deserto. O vento deslizando sobre a areia. Não se vê ninguém nas ruas. Parece uma pintura de Edward Hopper. Mariano quer que o deixemos em Windoeck para apanhar o avião para Lisboa. Discutimos os dois, eu a correr atrás dele, como uma louca, através das ruas desertas de Wlotzkas Baken. Kiluange atrás de ambos, a filmar a cena:

Mariano – Acabou, entendes? Estou farto desta merda!

Eu – Acalma-te! Não nos vais deixar agora. Isto é importante para nós os dois. As nossas raízes estão aqui!

Mariano – Raízes?! Raízes têm as árvores. Eu não tenho raízes. Sou um homem livre. Melhor: um português livre. Preto, é isso que tu queres ouvir?, um português preto – e então? No século XVI já Lisboa estava cheia de portugueses pretos. A bem dizer todos os portugueses são pretos. O que eu sei é que não tenho nada a ver com isto. Tenho saudades de uma bica bem tirada. Quero dormir numa cama decente, ver um bom filme, entrar numa livraria. Além disso estou farto da vossa música. Devia ter trazido o meu walkman e os discos da Amália e da Mariza. O fado também é preto, não sabias?, veio do Brasil trazido por pretos. O fado é preto e é português, exactamente como eu. Eu gosto é de fado.

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Cape Town, 11 de Novembro

Passámos a manhã em casa de Vincent Kolbe, pianista amador, historiador amador, um personagem que viveu intensamente os anos gloriosos do District Six, , o mítico bairro mestiço de Cape Town, e o seu triste fim. Mestiço muito claro (em Portugal seria branco) Vincent Kolbe defende que os chamados coloured deveriam assumir-se como crioulos, e que a sua matriz cultural está muito mais próxima do universo afro-latino – Luanda, sim, mas também Cuba ou Brasil – do que da cultura boére ou bantu. Mostrou-nos um vídeo sobre o famoso carnaval de Cape Town, a partir do qual se desenvolveu um ritmo próprio, o goema. Mostrou-nos um outro vídeo sobre a visita de um grupo de músicos cubanos ao Cabo e de como, em poucos minutos, já os cubanos tocavam goema com os sul-africanos como se fossem todos da mesma nação.

Vincent Kolbe – Os racistas odeiam-nos, e sabem porquê?, porque somos sexis…

Cape Town 12 de November 12.00

À noite fomos vê-lo tocar piano no Kennedy’s Restaurant. A seguir passámos ainda por um bar com música ao vivo, em Water Front, para ouvir um grupo muito jovem, que integra vários elementos moçambicanos. Curiosamente, alguns dos nomes mais importantes do panorama musical sul-africano são moçambicanos – estou a pensar no guitarrista Jimmy Dludlu, uma espécie de Jimmy Hendrix ou no malogrado Gito Baloy, assassinado em 2004 numa rua de Joanesburgo. Há outros.

Kiluange – Eu acredito na força revolucionária da mestiçagem!
Eu – O que queres dizer?
Kiluange – O apartheid destruiu o District Six não apenas por desrespeitar as leis do regime. Destruiu-o sobretudo porque funcionava. Porque era um lugar alegre e produzia cultura. O apartheid nunca produziu cultura. O nazismo não produziu cultura. A mestiçagem é a diversidade por oposição à unanimidade. A multiplicidade por oposição à monotonia. Finalmente, a mestiçagem tem a ver com sexo e não há energia mais poderosa do que a energia sexual.
Pouca Sorte – Nisso estou de acordo. Mano: deviam fazer centrais de energia sexual. Nunca mais faltava a luz em Luanda!

Karoo 19 de Novembro

Ontem gravámos um depoimento com a quarta mulher do meu pai, Sereta Botha, coreógrafa. Falou dos artifícios a que tiveram de recorrer para burlar o regime do apartheid, e da fuga de Faustino para Moçambique. Mostrou-nos um filme amador que mostra Faustino a tocar piano num dos bares mais famosos do District Six. Pareceu-me uma mulher muito corajosa. Disse-me: “Apaixonei-me por ele porque era proibido. Continuei a amá-lo, mesmo depois de o perder, porque era uma forma de não me perder a mim”.

Kiluange – Já repararam que em todos os lugares onde há mulatos há carnaval? Rio de Janeiro, Luanda, Cape Town. O carnaval é uma festa de povos mestiços. Os mulatos são inclinados ao riso. Se a mestiçagem é a revolução, o riso é a arma da revolução mestiça. É através do riso, através da música e da festa, que nós vamos transformar o mundo.

Pouca Sorte (rindo) – Cala a boca, mulato!

Estrada Mapumalanga, South Africa 20 de Novembro

Daqui a pouco entramos em Moçambique. Vou conhecer a minha mãe – que nem sequer sabe que eu existo. Como se diz a uma mãe, “sou a tua filha”, quando ela pensa que essa filha morreu no parto?

E isto filma-se?

Porque é de um filme que se trata. O meu filme. Vou chamar-lhe: “As Mulheres do Meu Pai”.

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